Muito se especula sobre possíveis reformas realizadas no antigo Egito pelo Faraó Khufu (Quéops), em especial, sobre possíveis reformas realizadas na Esfinge e na Grande Pirâmide de Gizé. Mas será que existem evidências historiográficas ou arqueológicas que comprovem isso?
Semana passada publiquei um artigo sobre o Diário de Merer, o mais antigo papiro egípcio encontrado até hoje, onde o oficial egípcio Merer, registra o 27º ano de construção da Akhet Khufu, mais conhecida como Grande Pirâmide de Gizé. Nos registros, Merer cataloga diversas idas a Tura, pedreira onde os blocos que formam a pirâmides foram cortados, bem como diversas vindas de Tura até a grande pirâmide, para descarregar tais blocos. Para ler o artigo completo, clique no botão abaixo.
O artigo repercutiu muito, foi o mais visualizado do site até hoje! Sendo assim, com muitas visualizações, vem muitas dúvidas também. Uma das mais frequentes era "Existe a possibilidade de Khufu ter apenas reformado a Grande Pirâmide, como ele fez com a Esfinge?". Pergunta essa que se tornou o motivo deste breve estudo que faremos agora.
O que muitos não perceberam é que no artigo sobre o Diário de Merer, citado acima, já foi claramente evidenciado que Khufu não reformava a pirâmide, mas a construía, segundo as palavras dos próprios egípcios. Sendo assim, no presente estudo nos prenderemos apenas a segunda parte da dúvida: Teria Khufu reformado a Esfinge?
Que fique claro que não estamos abordando aqui se a Esfinge foi reformada ou não, até porque, sabe-se muito bem que ela foi reformada. O ponto aqui é analisar a afirmação de ela ter sido reformada por KHUFU, o Faraó responsável pela construção da Grande Pirâmide de Khufu. Posteriores reformas e a datação não serão analisadas aqui, nos prenderemos apenas em responder a pergunta do parágrafo acima.
Para chegarmos a resposta dessa pergunta, precisamos primeiramente verificar o motivo da dúvida. Por que se considera isso? Onde está citado? Quem Citou? É suportado por evidências? E outras perguntas do tipo, que nos apontam uma base inicial.
Após pesquisar em diversos acervos acadêmicos, não fui capaz de encontrar qualquer menção a Khufu ter reformado a Esfinge, não existe sequer papiro ou inscrição egípcia que indique isto, bem como nenhum estudo científico que afirme. Sabendo disso, conversei com minha amiga Erika telles, também do grupo ArqueoHistória, que me informou ter lido sobre tal reforma em um livro chamado "Forgotten Civilization - The role of solar outbursts in our pas and future" do autor Robert Schoch.
De fato, ao pesquisar mais um pouco, percebe-se que o livro é única fonte escrita que cita um possível reforma feita na Esfinge por Khufu, após a mesma ter sido atingida por um raio. Agora que já temos a fonte da informação, passemos ao próximo passo, verificar a afirmação contida na mesma. É o que faremos agora, utilizando o livro citado acima.
Como podemos ver na imagem acima, a palavra raio aparece algumas vezes no livro, porém, só é utilizada em referindo-se á Esfinge nas duas páginas que marcamos, 25 e 158. Vejamos então o conteúdo de tais páginas.
Como vemos na imagem e na imagem acima (tradução na legenda da imagem), Schoch cita a Estela do Inventário, um famoso artefato egípcio, apontando que ela afirma que a Esfinge já existia durante o reinado de Khufu e que ele a havia reformado, após a mesma ter sido atingida por um raio.
Sobre a Estela do Inventário, temos um breve, porém completo estudo na pagina @Contextologia, que conta com imagens e traduções da estela e suas inscrições. Em resumo, a Estela data da 26º Dinastia Egípcia, ou seja, 22 Dinastias após a de Khufu, que era a 4º. Cronologicamente falando, o período de Khufu estaria tão próximo ao da produção da estela, quanto nós estamos atualmente do ano 1 d.c.
Como esperado, não vemos há sequer uma menção na estela aos pontos citados por Schoch. Pelo contrário, diferentemente do que Schoch afirma em seu livro, a estela não é descartada por egiptólogos, é um artefato egípcio totalmente genuíno. O que não são consideradas genuínas são as informações contidas na mesma, o que é totalmente diferente.
Se você tem um livro grego contanto uma história real e um livro grego contando uma história falsa, os dois são livros gregos originais, porém, diferem no conteúdo que carregam, que é o mesmo que acontece com a estela do Inventário e outros artefatos citados nos estudos.
De qualquer jeito, cumpre ressaltar que a Estela do Inventário não menciona em nenhum momento o tal raio atingido a esfinge, muito menos uma reforma feita por Khufu, como evidenciamos no artigo acima. Interessante é que, mesmo que a estela realmente afirmasse o que Schoch diz, ele mesmo enfraqueceria sua hipótese, quando diz ao final que os egiptólogos descartam tal item. Em resumo, a estela não contem a informação que ele afirmou que ela continha e mesmo que contivesse, seria considerada um apócrifo, como ele mesmo afirma ao final do parágrafo.
Ainda continuando nesta mesma página, alguns parágrafos acima, Schoch cita a Estela dos Sonhos de Thutmosis IV. Sabe-se que a estela dos sonhos, em nenhum momento cita Khufu ou um raio atingindo a Esfinge, porém, para cobrirmos todos os pontos citados por ele e excluirmos possibilidades, analisaremos suas inscrições e tradução.
Na parte superior da imagem, temos duas representações contando com duas mensagens:
Representação e imagem superior esquerda: O Rei do Alto e Baixo Egito, o Senhor das Duas Terras, Menkheperure Thutmosis, a aparência das aparências, concedida com vida. Cumprimento do (deus) com um vaso (Nemset). Harmakhis (esfinge): "Eu dou força ao Senhor das Duas Terras, Thutmosis, a aparência das aparências".
Representação e imagem superior direita: O Rei do Alto e Baixo Egito, o senhor das Duas Terras, Menkheperure Thutmosis, a aparência das aparências, concedido com vida. Fazer uma oferenda de incenso e uma libação. A Esfinge Harmakhis: "Eu dou força ao Senhor das Duas Terras, Thutmosis, a aparência das aparências".
Inscrições do meio, entre as duas representações acima: Palavras ditas: "Eu faço que Menkheperure apareça no trono de Geb, e Thutmosis, a aparência das aparências, no ofício de Atum".
Na parte de baixo, temos a mensagem principal que Thutmosis IV expressou em sua estela, vejamos:
Inscrição: Eis que quando Sua Majestade era um jovem, como Hórus em Khemnis, sua beleza como (a de) aquele que protege seu pai e que é visto como o próprio deus, o exército se alegrou em seu amor, os filhos reais e todos os chefes estavam em seu poder, fazendo-o florescer, e ele repetiu o circuito, sua força como (a do) filho de Nut. Eis que ele passou um tempo se divertindo no deserto de Ineb-Hedj (Memphis), em sua estrada norte e sul, atirando em um alvo de bronze, caçando leões e rebanhos e cavalgando em sua carruagem seus cavalos mais rápidos que o vento, junto com apenas dois de seus seguidores, enquanto ninguém (mais) sabia disso. Então chegou a hora de dar descanso a seus seguidores, nos membros de Harmakhis, ao lado de Sokar em Ra-Setjaw, Renutet no Djeme do Norte, Mut, a dona da Muralha do Norte e a dona da Muralha do Sul, Sekhmet que preside seu Kha , Seth, filho de Heka, o Lugar Sagrado da Primeira Ocasião (da criação), perto dos Senhores ou Kheraha, a estrada divina dos deuses em direção ao oeste de Heliópolis. Agora então, a grande estátua de Khepri jazia neste lugar, grande em poder e poderosa em majestade, a sombra de Re repousando sobre ela. As propriedades de Hut-Ka-Ptah e todas as cidades vizinhas vêm a ele, seus braços erguidos em adoração diante dele, carregando muitas oferendas para seu Ka. Um desses dias, aconteceu que o príncipe Thutmosis veio, passando na hora do meio-dia e sentou-se à sombra deste grande deus. O sono se apoderou dele, um sono na hora em que o sol estava no zênite, e ele encontrou a Majestade deste nobre deus falando com sua própria boca, como as palavras de um pai para seu filho, dizendo: "Olhe para mim, veja eu, meu filho Thutmosis. Eu sou seu pai, Harmakhis-Khepri-Atum, e eu darei a você a realeza na terra, na frente de todos os vivos. Você usará as Coroas Branca e Vermelha sobre o trono de Geb, o príncipe hereditário. A terra será sua em seu comprimento e largura, (tudo) que o Olho do Senhor-de-Tudo iluminar. A comida das Duas Terras será sua, (assim como) os grandes tributos de todos terra estrangeira, (sua) vida será um tempo, grande em anos. Meu rosto é seu, meu coração é seu, pois você é um protetor para mim, pois minha condição (atual) é como a de um necessitado, todos os meus membros (como se fossem) desmembrados como as areias do deserto sobre o qual me deito me alcançaram. Portanto, corra para mim, para que seja feito o que desejo, sabendo que você é meu filho e meu protetor. Saia, e estarei com você, serei seu líder".Ao terminar essas palavras, esse príncipe ficou olhando acordado com o que tinha ouvido ///.../// ele entendeu as palavras desse deus e colocou um silêncio em seu coração. Então ele disse: "/// Vamos nos apressar de volta para nossa casa na cidade! Vamos separar uma oferenda para este deus e vamos trazer bois, todos os vegetais e nossas armas serão levantadas em adoração para aqueles que foram (lá) antes de (nós) ///.../// nobre ///.../// Khefren, a estátua feita para Atum-Re-Harmakhis ///.../// dias de festividades / //.../// muitos ///.../// de Minha Majestade para ela, vivendo ///.../// para Khepri no Horizonte do Oeste de Heliópolis em ///.. .///
O texto continua, porém, de forma fragmentada e ilegível. Para nosso estudo, sequer precisamos do resto do texto, basta analisarmos o que está legível e vemos que em nenhum momento é citado Khufu, em nenhum momento é citado que um raio atingiu a esfinge e em nenhum momento é citado que ela foi reformada por Khufu após o tal raio.
Tenha total certeza que se houvesse algum papiro, inscrição ou artigo cientifico que comprovasse estes eventos, estaria aqui sendo citado, pois como historiador, é meu dever trazer toda e qualquer informação OFICIALMENTE COMPROVADA sobre os assuntos que abordo, porém, neste caso, não há. Pesquise nos acervos acadêmicos e comprove por si mesmo(a).
Já analisamos a primeira menção ao tal raio e a reforma da esfinge por Khufu, citadas por Schoch em seu livro. Também comprovamos que não há base historiográfica ou arqueológica que sustente esta afirmação, agora, passaremos ao segundo trecho em que os cita.
Como podemos ver, não existe muito o que analisar no trecho acima, pois ele sequer aponta alguma fonte que possa corroborar com sua afirmação. Ele apenas lança no ar "há um registro de que khufu reparou os danos causados por um raio na estátua" e espera que o leitor acredite em sua afirmação. Não é assim que se valida uma hipótese, seja ela científica, arqueológica ou historiográfica. Precisa-se de dados, referências e evidências que possam apoiar e corroborar suas hipóteses, como sempre faço em meus artigos, sempre apontando onde o leitor pode achar a comprovação do que afirmo.
Schoch é geólogo, mas não é historiador ou arqueólogo, logo, não possui conhecimento de causa nessas áreas. Como sempre digo, expertise em uma área em nenhum momento aponta expertise em outras áreas. A prova disso é que para tornar seu livro mais interessante e "confiável", Schoch precisou inventar informações, que como vimos acima, não estão registradas em local algum, a não ser seu livro.
Pesquise nos lugares certos, procure pelas evidências, não pelas afirmações. Não é difícil, em poucos 20 minutos reuni as evidências que utilizei neste estudo, e que podem ser comprovadas pelo leitor nos links acima citados, todos de acervos acadêmicos oficiais. Baseie-se pelos estudos dos profissionais que atuam na área, não pelos que se aventuram adentrando outras áreas, que pouco conhecem.
Estude história para aprender sobre os fatos comprovados, não para ter que acreditar no que lhe é dito. Na área histórica, a crença não tem lugar, apenas fatos comprováveis.
Como dizia Carl Sagan:
"Qualquer um pode afirmar que tem um rinoceronte invisível e indetectável em sua garagem, mas conseguir provar isto e outra história."
Referências:
Forgotten Civilization - The role of solar outbursts in our pas and future. - RoberT Schoch
The Red Sea Scrolls: How Ancient Papyri Reveal the Secrets of the Pyramids - Pierre Tallet
Les Papyrus De La Mer Rouge: Le Journal De Merer - Pierre Tallet
Dream Stele of Thutmose IV - Scriptural Research Institute
Links:
http://giza.fas.harvard.edu/objects/54850/full
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