Estamos acostumados a ouvir lendas sobre o Olimpo grego, com o magnífico Zeus, a encantadora Afrodite, ou sobre a mitologia Suméria com os primordiais Enki e Ninhursag, e sobre outros mitos e lendas de diversas civilizações ao longo do planeta terra. Mas além dessas tão ricas e interessantes narrativas, também temos as mitologias dos povos brasileiros, como os Guarani, que por sua vez, convergem em vários pontos com mitos e lendas de outros povos.
Por meio de um conjunto de narrativas sobre espíritos da floresta e deuses, os povos indígenas explicavam e transmitiam às suas gerações (por meio de canções) o que viam, sobretudo os fenômenos naturais, como a concepção de uma criança, o nascer do sol, e até o movimento das marés. Até aí, nada de novo sob o sol, pois sabemos que muitas culturas desenvolveram suas mitologias neste mesmo viés.
Os Guaranis
Primeiramente precisamos entender que no Brasil, os indígenas foram estudados e divididos em grupos relacionados a língua que eles falavam. Desta maneira, as tribos brasileiras foram divididas em dois grandes troncos linguísticos, o Tupi e o Macro-Jê, onde cada tronco linguístico desses, possui subdivisões chamadas de famílias linguísticas. Os Guaranis são considerados os grupos que se utilizam da língua Guarani, que por sua vez contém elementos do tronco linguístico Tupi, por isso o nome Tupi-Guarani.
Como já dito, Tupi-guarani é uma família linguística pertencente ao tronco Tupi, que congrega várias línguas indígenas da América do Sul e apresenta uma ampla distribuição geográfica pelo continente. Grande parte das tribos indígenas que habitavam o litoral brasileiro, quando da chegada dos portugueses ao Brasil em 1500, falava línguas pertencentes à família Tupi-guarani.
A língua Guarani em si, embora considerada uma família, ou ramo do tronco linguístico Tupi, é bastante antiga, e também já era utilizada pela maioria dos grupos indígenas na época da chegada dos portugueses, mas com algumas diferenças do que hoje conhecemos como Tupi-Guarani. Atualmente o Guarani é uma das línguas indígenas de maior importância no mundo, uma vez que é um dos idiomas oficiais do Paraguai, conjuntamente com o espanhol. A língua guarani antiga ainda se subdividia em dialetos como: Mbyá, Nhandevá, Kaiowá ou (Pai-tavyterã).
Os Guaranis habitam atualmente um território que compreende regiões entre Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina e subdividem-se internamente em diversos grupos muito semelhantes entre si, nos aspectos fundamentais de suas organizações sociopolíticas, mas diferentes no modo de falar a língua guarani, de praticar sua religião, e distintos no que diz respeito às suas mitologias.
Abordaremos no artigo a corrente mitológica Guarani estudada no livro “Teología Guaraní”, de Graciela Chamorro, que descreve vários aspectos mitológicos e históricos deste incrível povo, com já dito, baseados nos escritos jesuítas de aproximadamente 400 anos.
OS PRIMEIROS SERES
Como tudo tem que ter um começo, na mitologia guarani não é diferente. “No começo de tudo, quando não havia tempo ainda, havia Yamandu. Yamandu é “o silêncio que gera o caos”, é o ancestral de todos os ancestrais”. Do caos gerado por esse silencio surge uma substancia (ou entidade) feminina chamada Jasuka, que em guarani significa (Princípio Gerador). Segundo a história, essa entidade chamada Jasuka deu origem a um ser primordial e o amamentou, cuidando do mesmo até que ele “crescesse”.
Para os Guaranis, esse ser primordial é conhecido por vários nomes como: Nhanderuvuçú, Nhandejara, Nhande Ramõi, ou Xiro, que significaria algo como (Nosso Avô Eterno). É dito que Nhanderuvuçú representava o céu primordial, e usava um diadema, uma espécie de coroa divina envolta por penas das aves sagradas. Do centro desse diadema se levanta um ser chamado Nhande Jari, que significa 'Nossa vó'.
Agora a história começa a ficar mais familiar, pois começa a criação dos céus e da terra, sendo criados sete céus, ou para alguns autores, sete níveis de céu. Esses céus tinham formato de círculos concêntricos, ou seja, sete círculos um dentro do outro, de maneira em que os círculos externos eram progressivamente maiores que os centrais. Abaixo desses sete céus foi colocada uma fundação para a grande terra, essa fundação foi criada acima da cabeça de Jasuka, que se situava exatamente abaixo do primeiro céu, o círculo menor do meio.
Nhanderuvuçú cria um “disco” de terra e o expande, posicionando-o na cabeça de Jasuka. Após isto, ele divide esse disco em quatro partes iguais e as chama de “as grandes moradas”, e coloca uma palmeira bem no centro, que serviria para unir os quatro pontos da terra, e mais uma em cada uma dessas moradas.
Cada uma dessas palmeiras que foram colocadas nas moradas representava uma divindade, essas divindades eram conhecidas pelos Guaranis como “seres criadores” ou Nhandetapý. Na morada Norte habitava o “fogo sagrado”, na morada leste habitava a “neblina”, na morada oeste as Aguas, chuvas e o trovão, e na morada sul o a “grande terra” ou “poder gerador”.
Ao analisar os parágrafos acima, percebe-se que foram criados os céus, a terra e os quatro elementos, se você considerar que o fogo sagrado que habita o Norte é o fogo, a neblina que habita o Leste é o ar, as aguas que habitam o Oeste é a própria água e a grande terra que habita o Sul é a terra, que gerava e dava a vida para os animais, por isso, poder gerador.
A Criação da Humanidade
Agora que a terra os céus, as águas e os animais já tinham sido criados, Nhanderuvuçú resolveu criar o milho, e o plantou na terra. Algum tempo depois Nhanderuvuçú pediu para Nhande Jari colher o milho que ele havia plantado, o que foi recusado por ela. Nhande Jari tentava se explicar dizendo que aquele milho ainda não estava na hora de ser colhido, o que acabou enfurecendo Nhanderuvuçú, que resolveu causar uma grande catástrofe para acabar com a terra, tudo por raiva de sua esposa.
Brincadeiras aparte, prestes a causar a destruição da terra, Nhanderuvuçú é surpreendido por um desconhecido, estranho e irresistível som. Era Nhande Jari, que batia um pedaço de bambu verticalmente no chão, e no mesmo ritmo entoava o primeiro cântico sagrado da humanidade, acalmando Nhanderuvuçú e fazendo todas as coisas se harmonizarem novamente.
Mais calmo Nhanderuvuçú olha para a floresta e enxerga um porongo, uma espécie de cabaça, e com ele começa a bater em uma espécie de cesto sagrado que a ele pertencia. Ao bater no mesmo ritmo do cântico entoado por Nhande Jari, ele faz com que de dentro do cesto surja o primeiro homem. Feliz com o resultado, Nhanderuvuçú pega o takuapu, que é o nome dado atualmente ao instrumento de bambu tocado por Nhande Jari e também bate com ele no cesto sagrado, fazendo assim surgir a primeira mulher. Dessa maneira os dois foram tocando, cantando e criando os seres humanos.
Agora, tomado pela paz e contente com a suas novas criações, Nhanderuvuçú, resolve deixar não só não de destruir mais a terra, mas deixa-la para os homens. Resolve então partir com Nhande Jari rumo aos sete céus, mas para isso ele precisa enfrentar um tortuoso caminho em formato de serpente, cercado por um abismo sem fim. Após algum tempo e algumas aventuras “heroicas” os dois conseguem chega ao seu destino, e tomam os céus como sua nova morada.
Já os dois primeiros seres humanos criados por meio da canção foram chamados de Rupave e Sypave, que significam respectivamente “Nosso Pai” ou “Pai dos povos’’ e “Nossa Mãe” ou “Mãe dos povos”.
A Primeira Desconfiança e os Gêmeos
Segundo a lenda, muito tempo se passou e já haviam outros seres humanos sobre a terra, até que Sypave ficou grávida de gêmeos, feliz, Rupave saiu para fazer a colheita e se preparar para a chegada de seus novos filhos. É importante saber também que eles tiveram outros filhos antes desses gêmeos. Entre os filhos de Rupave e Sypave estava Porâsý, notável por sacrificar sua própria vida para livrar o mundo de um dos sete monstros legendários, diminuindo seu poder para dar energia aos outros seres. Você verá que vários dos primeiros humanos ascenderam em suas mortes e se tornaram “entidades” menores da mitologia guarani.
Ao voltar para casa, Rupave descobriu que sua mulher tinha se encontrado com outro homem, o que o deixou enfurecido, pois isso nunca havia acontecido até então. Isso gera uma discussão entre os dois, e Sypave afirma que os filhos são de Rupave, que, com raiva e dúvida se era realmente o pai dos gêmeos, não acredita na esposa e resolve abandonar sua família, sumindo dos planos terrenos.
Em seu último suspiro de tristeza, Rupave fala para Sypave: “ Se você é essencialmente a minha esposa, você há de encontrar a minha morada” e então ele some, e como um raio e vai para os céus. Mais tarde na continuação da lenda é dito que Rupave teve que passar pelo mesmo caminho da serpente, assim como Nhanderuvuçú, para chegar aos céus.
Abandonada Sypave resolve nomear os filhos como Guaraci e Jaci, logo após isso, sai à procura de Rupave, passando a vagar sobre a terra, grávida e solitária. Interessante é o fato de que ela conversava com um dos seus bebes, mesmo antes de dar à luz, e este, que era Guaraci, respondia de maneira com que ela escutasse e entendesse. Mais interessante ainda é que Guaraci guiava a mãe, apontando o caminho que ela devia seguir para encontrar o pai.
Em um certo momento da jornada, Guaraci pediu para sua mãe colher uma linda flor amarela que estava no caminho, mas antes que pudesse colher a flor, Sypave foi picada por uma abelha, ao sentir a dor, ela se recusou a colher a flor. Guaraci por sua vez, ficou chateado com sua mãe e resolveu pregar uma peça nela, foi então que ao chegarem em uma encruzilhada, ele propositalmente apontou o caminho errado para sua mãe.
O caminho que Guaraci indicou levou sua mãe para a morada das onças pintadas, conhecidas pelos guaranis como “jawapini” ou “jaguareti”. É importante salientar que para os guaranis a onça é o único ser que realmente rivaliza com o homem, capaz de tirar sua vida e comer sua carne sem pensar duas vezes. Ao chegar no covil das onças Sypave foi recebida pela onça anciã, que a reconheceu e entendeu sua importância, bem como dos gêmeos que estavam para nascer.
Foi então que as outras onças mais jovens voltaram de uma caçada má sucedida, viram a mulher e desavisados, atacaram, mataram e comeram-na. A onça anciã apenas conseguiu salvar os dois gêmeos, realizando um tipo de parto de urgência. Após isso, a onça anciã omitiu a morte da mãe e ordenou que as crianças fossem criadas e cuidadas pelas onças como se fossem “da família”.
Uma coisa importante a salientar é que Guaraci e Jaci eram dois meninos, e não um menino e uma menina. Se você pesquisar na internet e inclusive em alguns livros mais recentes, encontrará a errônea informação de que Jaci era a deusa da lua, o que está incorreto, pois na mitologia Guarani original Jaci era o DEUS da lua, irmão de Guaraci que era o deus do sol. Não se sabe o porquê dessa variação de história, mas caso você queira se aprofundar sobre a versão original indicamos o livro: “Kuarahy e Jasy em busca da origem”, de Spensy Kmitta.
Os irmãos então foram crescendo e se desenvolvendo, Guaraci se mostrava mais forte e mais sábio, enquanto Jaci também era bastante forte, mas era uma criança um tanto menos brilhante que seu irmão, que inclusive era considerado o irmão mais velho, pois teria nascido antes de Jaci. O mito continua de maneira curiosa, narrando que certa vez os dois irmãos saíram para caçar, e acabaram ultrapassando o território que havia sido delimitado pelas onças, quando encontraram um papagaio que nomearam de “papagaio do bom falar” isto porque o papagaio realmente falava.
O papagaio por sua vez, ao avistar os gêmeos, os reconheceu e acabou contando para eles a verdadeira história da origem deles, como eles tinham chegado até ali, e inclusive que as onças tinham matado e comido a sua mãe. Furiosos os irmãos sentiram vontade de se vingar das onças, mas Jaci dá a ideia para eles tentarem ressuscitar a mãe primeiro. Os gêmeos saem atrás dos ossos da mãe e incrivelmente conseguem acha-los, então Guaraci se encarrega de ajeitar os ossos da mãe, enquanto Jaci se encarrega procurar os outros materiais necessários para o ritual.
Eis que Jaci retorna com os materiais, mas acaba trazendo os ingredientes errados, resultando na falha do ritual e em vez de ressuscitar a mãe, os dois acabaram apenas conseguindo transformar seus ossos em pó, o que acabou deixando Guaraci bravo e desapontado com Jaci, e inclusive fazendo-o pensar que ele só conseguiria tomar seu lugar no mundo quando seu irmão não estivesse mais por perto.
Após o ritual falho, os dois se voltaram para a primeira ideia, que era se vingar das onças por terem matado sua mãe. Então os dois voltaram para o domínio das onças e atraíram todas elas para uma frágil ponte feita por eles, da qual em baixo haviam afiadas estacas de madeira. O plano acabou dando certo e todas as onças caíram na armadilha e morreram, exceto uma que estava gravida, que foi deixada viva em respeito a onça anciã, que cuidou dos dois desde criança, e é por causa dessa onça gravida que sobrou, que existem onças até hoje, segundo os Guarani.
A Ascensão aos Céus - "Jornada Guarani"
Desapontados por não terem conseguido ressuscitar a mãe e aliviados por terem se vingado das onças, Guaraci e Jaci decidem que é a hora de tentar achar seu pai, mas para isso eles sabem que precisam ascender em mente e espirito, pois, seres humanos não conseguiam chegar aos sete céus. Os dois então entram em um longo período de jejum e meditação. O local onde Guaraci meditava acabou reunindo outros índios e se tornando a primeira grande tribo guarani.
Quando finalmente achavam que estavam prontos, eles construíram uma imensa ponte feita de flechas, e por ela conseguem chegar ao caminho em formato de serpente, o mesmo que Nhanderuvuçú precisou percorrer para chegar aos céus.Os dois então percorreram o caminho em formato de serpente, enfrentando e derrotando todas as dificuldades no seu caminho.
Chegando ao final, encontram um templo na entrada dos sete céus, e notam que lá está havendo uma festa, um tipo de encontro espiritual. Ao entrarem, os dois percebem que seu pai Rupave estava lá sentado ao lado de sua mãe, perceberam também que haviam outras pessoas nessa festa e que estavam participando de um tipo de torneio, que se resumia em quem conseguia levantar um grande luzeiro ou “lanterna” que era muito pesado e pertencia ao Nosso Avô eterno, Nhanderuvuçú.
Rupave ao avistar os dois homens os convidou para entrar na competição, e os dois aceitaram, conseguindo inclusive vence-la, levantando tal lanterna. Após isso, Rupave acaba reconhecendo os dois como seus filhos legítimos e como prêmio ele acaba dando os dois grandes luzeiros da terra, um para cada um de seus filhos, sendo que Guaraci ficou com o Sol e Jaci ficou com a Lua. Após isto Guaraci e Jaci foram eternamente separados, pois como Guaraci pensava que só teria seu lugar no mundo quando seu irmão não estivesse mais por perto, foi o que foi feito, por isso o sol só aparece quando a lua se vai, e vice-versa.
É interessante complementar com um fato bastante curioso sobre o eclipse, para os antigos guaranis, as onças que nasceram daquela única onça grávida juraram vingança contra os gêmeos e nunca deixaram de persegui-los, de forma que para eles o eclipse é quando as onças finalmente conseguem encurralar os irmãos em um só lugar, por isso os guaranis têm rituais que são realizados durante o eclipse, com o objetivo de afastar as onças e assim os irmãos poderem voltar para seus respectivos lugares.
Desta maneira foi formado o que é conhecido como jornada guarani, que faz parte da crença interna dos guaranis, se resumindo basicamente em cada ser completar suas missões de vida e provar que merece o reconhecimento de “Nosso Pai”, para que assim finalmente possam ascender e retornar ao criador como partes dele.
Bom, é obvio que a mitologia Guarani vai muito além disso, assim como o panteão de deuses dos mesmos, que é bem maior do que o que foi citado acima. Incrível é que mesmo com um breve resumo como esse, já conseguimos parâmetros para comparações com diversos mitos e lendas de outras civilizações, como mostraremos a seguir.
Semelhança ou Elo?
O primeiro ponto que chama a atenção é exatamente logo no início, quando o tempo não existia, existia somente Yamandu, que era o silencio que gera o caos, e em seguida surge Jasuka, a substancia feminina.
Ora, isso não lhes é familiar? Diversas civilizações da antiguidade iniciam seus poemas de criação exatamente da mesma maneira, sempre com uma narrativa que enfatiza um começo caótico, onde inclusive só um ser existia e esse ser era responsável por esse caos.
Como foi dito existem diversas mitologias que começam exatamente assim, como por exemplo a mitologia babilônica, onde cercados pelo caos, existem apenas Apsu e Tyamat, os seres primordiais. Os dois, se encarregam de separar essas águas e trazer a ordem à existência, bem como mais tarde, os dois dão origem aos primeiros deuses do panteão babilônico, da mesma maneira que acontece na mitologia guarani.
Nota-se também que outras culturas da antiguidade também têm elementos muito parecidos com esses da mitologia guarani, por exemplo, o mito da criação do mundo da mitologia grega, que conta exatamente a mesma história, com nomes diferentes é claro. “No início, nada existia. Tudo era escuro e nada existia e isto era o Caos. Gradualmente Gaia (a mãe terra) surgiu e foi ganhando forma e criou o Mundo. A Mãe-Terra teve um filho, Urano, que era o primeiro ser divino. ”
Se você parar para pensar, acaba percebendo que Gaia a mãe terra, era para os guaranis Jasuka, que inclusive teve a terra criada em cima de sua cabeça como já citado, o que acaba fortificando ainda mais esta comparação. Da mesma maneira que Jasuka da origem a Nhanderuvuçú, considerado o céu primordial, primeiro ser divino para os guaranis, Gaia da origem a Urano, que também representa o céu para os gregos.
Outro ponto que pode ser comparado é a criação dos pontos cardeais e dos elementos, onde na mitologia guarani foram criadas as quatro grandes moradas e dividas igualmente sobre a terra, cada uma como morada de um dos quatro elementos. Na mitologia Japonesa, encontra-se essa mesma disposição, onde Kagutsuchi, o deus do fogo ficou com a porção de terra norte, Amaterasu, a deusa do vento ficou com a porção leste, Susanowo, o deus da tempestade, ficou com a porção oeste e Tsuki-yomi, o deus terra ficou com a porção sul. Coincidentemente os mesmos elementos para os mesmos pontos cardeais.
Dando continuidade as comparações, temos o momento em que Nhanderuvuçú cria o primeiro homem e a primeira mulher ao tocar instrumentos musicais. Mas para explicar esse ponto precisamos explicar o que é a música para os indígenas. Basicamente, as tribos indígenas não só no brasil, mas em todo o mundo, tem os cantos de entoação como parte de sua cultura. Isso acontece, pois, grande parte das civilizações indígenas não tinha uma forma de escrita, registrando apenas desenhos em pedras.
Sendo assim, com objetivo de ter uma forma concreta de se passar as histórias, mitos e lendas, os indígenas perceberam que era mais fácil fazer isso por meio de canções, uma vez que a canção tem um sincretismo concreto, não se pode mudar palavras ao bem entender, ou seja, era uma maneira de tentar assegurar que as histórias seriam contadas exatamente da mesma maneira que eram contadas no início, sem que as pessoas adicionassem, tirassem ou mudassem partes dela. Esse é exatamente o ponto que queríamos chegar.
Pesquisando sobre os povos da civilização indiana proto-histórica, encontramos diversos relatos de que os povos da época faziam o mesmo, transmitiam suas histórias por meio de cantos considerados sagrados, inclusive, é sabido que eles faziam isso exatamente para garantir que os contos não fossem alterados.
Não podemos deixar de citar também o caminho que Nhanderuvucú faz ao abandonar o plano terreno e deixar a terra para os homens, onde ele precisa atravessar um enorme caminho em formato de serpente. Na cultura Maori, quando um homem morria, seu espirito deveria atravessar o “caminho da serpente sagrada” e, ao chegar ao final ele seria recompensado com a sabedoria dos deuses e não mais precisaria reencarnar.
Não só na cultura maori esse caminho da serpente é citado, mas também em alguns contos da mitologia japonesa, onde uma alma deveria atravessar o “caminho da sabedoria”, que era exatamente um caminho em formato de serpente cercado por abismos. Após chegar ao final essa alma encontraria a “verdade”. Bom, o conto guarani descreve exatamente isso, onde os indivíduos precisam ascender em mente e espirito para conseguirem atravessar o caminho em formato de serpente, e como vimos, ao conseguir, ganham poderes e um local nos céus.
(Lembrei do Goku andando pelo caminho da serpente após morrer, no Dragon Ball)
A parte que vem a seguir é a que mais pode ser comparada a diversas culturas, a primeira desconfiança e os gêmeos. Como citado, Sypave engravida de gêmeos e em seguida, Rupave, seu marido, duvida de que os gêmeos são seus filhos. Voltando a mitologia e história grega, temos o conto de Céfalo e Pócris, onde Prócris era casada com o Rei Céfalo da Tessália. Amavam-se com profunda ternura, porém sua felicidade terminou quando Eos, deusa da aurora de dedos cor-de-rosa, apaixonou-se por Céfalo e raptou-o para que vivesse ao seu lado. Apesar de toda a sua beleza, ela não conseguiu conquistar o amor de Céfalo. Por fim, perdendo as esperanças, consentiu que ele retornasse para viver com a esposa.
No entanto, sentindo-se abandonada pelo amante, Eos sugeriu que a sua esposa Prócris teria um amante. Eos aconselhou a Céfalo de se disfarçar em um rico mercador e tentar seduzir Prócris com ricos presentes, prometendo-lhes muitos outros presentes caso ela se entregasse a ele. Assim colocaria à prova a fidelidade da esposa e mostraria o quanto os homens são crédulos e ingênuos.
A história acima não lhe parece familiar? A analogia utilizada acaba nos indicando a mesma desconfiança de um homem por sua esposa, mas no caso dos Guaranis quem se exilou foi Rupave, não sua mulher, como na versão grega. Podemos ir mais a fundo ainda e comparar essa primeira desconfiança com um texto bíblico, que diz: “Foi assim que o nascimento de Jesus Cristo aconteceu: durante o tempo em que sua mãe, Maria, estava prometida em casamento a José, ela ficou grávida do espírito santo antes de se unirem. No entanto, visto que José, seu marido, era justo e não queria expô-la publicamente, ele pretendia se divorciar dela em segredo." Citada na bíblia em Mateus 1:18,20.
Devemos considerar que uma história baseada em outra logicamente terá pontos diferentes, exatamente com o intuito de demonstrar que não é um plagio. Mas ao pesquisar tais mitos e lendas, entende-se que os detalhes diferentes em nada alteram o cerne da história, a mensagem identificada a ser passada é a mesma, independentemente de suas peculiaridades.
E os Gêmeos? Guaraci e Jaci, gêmeos recém-nascidos, que por sua vez acabaram sendo criados por uma onça e depois descobrindo sua verdadeira origem. Essa história também não lhes é familiar? Bom, talvez você conheça a história de Romulo e Remo, dois gêmeos que foram criados por uma loba que os amamentou e cuidou deles até que eles fossem encontrados por humanos mais tarde, e posteriormente, Romulo viria a se tornar o fundador de Roma. Nota-se que a história é praticamente a mesma, claro que com as respectivas mudanças para se encacharem no contexto indígena, onde o lobo seria a onça, Romulo seria Guaraci e a primeira grande tribo guarani seria Roma.
Mais à frente, o trecho em que Guaraci e Jaci são reconhecidos como filhos de Rupave após levantarem o grande luzeiro, pode ser comparado a mitologia nórdica, onde Thor passou por um teste em que deveria conseguir levantar e manusear o Mjölnir, o martelo mítico que pertencia a seu pai, o deus Odin. Após ver que Thor conseguia manusear normalmente o Mjölnir, Odin o aceita como verdadeiro herdeiro do trono. Na história guarani, vemos quase a mesma coisa, mas no caso, os dois filhos de Rupave ganham esse reconhecimento, e não só um como na mitologia nórdica citada.
Como já dito, a mitologia guarani não é só o que foi citado aqui, usamos apenas os primeiros mitos descritos por eles, e mesmo assim já conseguimos comparações com diversos mitos de diversas outras culturas de pontos diferentes do mundo. Com isso em mente, imagine tudo o que poderia ser comparado se pudéssemos descrever neste artigo toda a mitologia guarani?
TUPÃ
Talvez você tenha estranhado o fato de termos descrito a mitologia da criação guarani sem termos citado Tupã, que para muitos é o maior deus do panteão guarani. Bom, acontece que para os primeiros guaranis, Tupã não era um deus, e sim um conceito de algo sagrado ou divino. Tupã ganhou a personificação de um deus tempos depois desses tempos em que as histórias que citamos eram contadas. Nos tempos atuais, Tupã é considerado o deus do trovão, e também deus criador.
Isso aconteceu devido a interferência dos jesuítas que trouxeram conceitos que estudavam dos povos politeístas, e com isso tiravam suas próprias conclusões, que com o passar do tempo acabaram influenciando os próprios indígenas, uma vez que eram ensinados pelos jesuítas. Uma evidencia disso é que se você pesquisar sobre Nhanderuvucú vai encontrar alguns autores que se referem a ele como “Nhanderuvuçú ou Tupã”, isso por que os índios também se referiam a ele assim, mas não por ser seu nome, sim por ele ser considerado o primeiro ser divino.
Segundo Friedd Paz Grünberg em seu livro “Cosmovisión Tevyterã” a palavra Tupã no sentido que era usada pelos primeiros guaranis pode ser exatamente comparada aos termos “divino” ou “sagrado”, isso porque existiam inclusive outras divindades que possuíam tupã no nome como por exemplo karazawa-tupã e kawakami-tupã dentre outros. Ele afirma também que, inclusive, o termo também pode significar algo como “sobrenatural” ou até “demoníaco”, pois o medo expressado pelos índios é bastante enfatizado nos textos jesuítas, o que pode indicar que tupã não era algo bom ou ruim, mas algo sobrenatural que poderia se manifestar das duas maneiras.
Resumindo, quando os jesuítas viam os índios apontando para um raio e gritando “ Tupã” eles entendiam que Tupã era o deus dos raios para eles, quando na verdade eles estavam dizendo que aquilo era uma manifestação divina/sobrenatural, de algo que não pertencia ao plano terreno. Replicando esse errôneo pensamento por século, os jesuítas acabaram influenciando a cultura dos próprios guaranis.
Após a leitura de pelo menos oito bibliografias diferentes, bem como pesquisa em diversos artigos acadêmicos acabo chegando a duas hipóteses que poderiam explicar todas essas “coincidências” citadas no texto.
A primeira delas pode ser explicada de maneira simplificada pela seguinte afirmação. Hipótese 1: Os índios que habitavam o território brasileiro muito tempo antes da chegada dos portugueses acabaram se tornando um tipo de “colecionadores de lendas”, onde eles realmente tiveram contato com todas essas civilizações citadas, pois como sabemos, as rotas marítimas dos povos antigos incluíam as américas muito tempo antes do que se pensava. E a partir disso, os índios foram construindo gradativamente sua mitologia e suas lendas baseadas nesse contato.
Hipótese 2: Consiste na afirmação de que essas histórias praticamente iguais também são resultado desse contato, mas de forma diferente, de maneira em que todas essas civilizações, não só os índios, fossem ramificações de uma única e mais antiga civilização, que por algum motivo, talvez catastrófico, foi dizimada, forçando os sobreviventes a se espalhar por partes diferentes da terra, mas mantendo o que pudessem de sua cultura original. Seguindo essa hipótese, as peculiaridades e diferenças entre os contos resultariam apenas dos efeitos do passar do tempo, onde cada novo povo formado por esses sobreviventes se encarregaria de “moldar” suas mitologias de maneira com que elas atendessem ao estado presente de sua sociedade, mas não fugisse a versão original.
Bom, independente de qual seja a teoria, uma coisa é certa, ela com certeza aponta para uma certa e incontestável ligação entre ameríndios e outras civilizações antigas.
Bibliografia
Aldo Litaiff - Mitologia Guarani. A Criação e a Destruição da Terra
Daniel Munduruku - O Karaíba: Uma História do pré-Brasil
Eduardo A. Navarro - Método moderno de tupi antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos
Friedd P. Grünberg - Cosmovisión Tevyterã
Gvard L. Yehrman - Guarani, Las primeras Creencias
José de Alencar - O Guarani
Daniel Munduruku - Contos Indígenas Brasileiros
Emerson Guarani e Benedito Prezia - A criação do mundo e outras belas histórias indígenas
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